segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Pai Eleutério

Pai Eleutério

Na segunda metade do século XVIII, a vida de um negro se iluminou pela consciência do desapego pelo amor, ele é conhecido hoje como Pai Eleutério.

Foi trazido da África ainda jovem, sofreu muito como todos os seus irmãos de infortúnio a perda da terra natal e de sua família, um negro forte, alto e muito magro que se comunicava bem com seus iguais e por sua esperteza e força de trabalho era respeitado por seus irmãos. Seus senhores viram nele logo a possibilidade de grandes lucros e após pouco tempo de trabalho pesado na lavoura foi elevado a condição de reprodutor da fazenda.

Os reprodutores tinham grandes regalias e entre os escravos se destacavam como líderes pois em poco tempo se tornavam pais de grande parte deles assumindo a liderança do grupo e assim eram tratados por seus senhores.
Tinham eles o direito de deitar-se com qq escrava que desejassem, comiam bem e tinham o direito de escolher um único dos filhos para eles criarem, e assim fez Eleutério.

Adorava crianças e sofria cada vez que via uma delas separada das mães para venda ou açoitados pela impiedosa chibata, aplicava todos os conhecimentos que tinha na cura dos males de seu povo, conhecia o poder das ervas e das mirongas, dos orixás e dos encantados que assombravam as matas e das almas dos penitentes na senzala que enchiam as noites em torno do tronco.

Mas pode escolher e criar um menino, alguém muito parecido com ele mesmo e que logo ensinou tudo o que sabia e cuidou sempre para que fosse invisível às maldades da escravidão, mas o menino além de inteligente belo e amoroso ao pai nunca concordou com a resignação dele em ser escravo, queria ser livre e dar liberdade ao seu povo o que muito preocupava Eleutério.

Todas as crianças da fazenda gostavam de Eleutério e paravam horas para ouvir suas histórias sobre os orixás, sobre a África e sobre os encantados que enchiam as matas e as plantações, entre elas o único filho de seu senhor, criança fraca de poucas cores que vivia dentro de casa e sempre doente sem que os médicos soubessem o que tinha, Eleutério tinha muita pena do garoto e muito medo da inveja por ter um belo filho sadio e forte, Eleutério sem que soubessem e correndo riscos tentou descobrir a cura dos males do menino, sem resultados, passou então a ir a casa grande vez por outra por alguma desculpa para conversar com o menino e dar a ele um pouco de alegria.

Seu filho nesta época já era um rapaz e conforme o costume ficou na fazenda com o pai, mas era diferente dele, revoltava-se com a escravidão, queria a liberdade e estava disposto a tudo para isto, organizou uma fulga e durante a mesma matou o capataz mas foi capturado.

Eleutério entrou em desespero, sabia o que isso significava, o filho seria açoitado como exemplo, suas feridas seriam salgadas, cortariam sua língua e se sobrevivesse seria vendido para outra fazenda bem longe, não se conteve ao ver seu amado filho, o único que lhe restara, padecer tanto no tronco e investiu contra os homens da fazenda tentando salvar o filho, foi preso e também açoitado. Viu o filho morrer durante a confusão, para não ter mais motivo de brigar teve o filho assassinado, ordem do senhor da fazenda.
Eleutério foi feito exemplo contra a revolta, foi surrado e açoitado até que tivesse seus braços e pernas quebrados e quase morto foi jogado num pântano de rio próximo da estrada para morrer.

Durante o dia escaldante e a noite gelada que se seguiram, só havia uma certeza: de ter chegado sua hora e que nada mais havia para chorar ou prende-lo a esta vida, de tudo o que mais doía era a perda do filho e de ele não ter conseguido salva-lo ou orientar o filho para outra possibilidade de existir, com certeza quando Eleutério estivesse morto teria o filho assumido sua posição e suas regalias, mas não, a busca pela liberdade era muito maior que todo, o filho não aprendeu a ser livre por dentro, muitos rancores e mágoas tinham se enraizado nele e foram estes sentimentos que determinaram suas escolhas para tal final trágico, morrer baleado em frente ao pai, seu grito de liberdade foi seu canto de morte.

Enquanto a noite avançava e a aurora já dava seus sinais morria Eleutério envolto em suas lembranças, agora já não mais culpas, nem amarguras, nem medos só uma sensação de entorpecimento e paz tomavam sua mente, seu corpo já não doía e a vista falhava, em meio a isto vislumbrou à sua frente, em meio às folhagens do alagado, uma pequenina flor violeta azulada, muito pequenina e bela, os primeiros raios da manhã foram nela e ele teve um súbito pensamento: aquela plantinha curaria o sinhozinho de sua doença, ainda havia trabalho a fazer pois a vida estava mostrando a ele um caminho e Eleutério escolheu: escolheu abandonar toda sua dor, toda sua tristeza todos os sentimentos de rancor e medo para salvar a vida do pequeno sinhozinho.

Olhou para o sol e agradeceu, pediu forças a sua mãe do rio para que permitisse a ele forças de colher a planta e ir cuidar de seu pequeno amigo, e levantou, não sentiu dor nem frio, ansiedade ou pressa, sabia o que devia ser feito.

Dois dias se passaram desde que os fatos tenebrosos haviam ocorrido, e com a confusão, o medo e a tristeza pela morte de seu querido amigo Eleutério, sinhozinho estava muito mal, o médico havia sido chamado e estava tentando de tudo mas sem jeito, o menino definhava rapidamente.
O senhor fazendeiro já estava certo do trágico desfecho quando foi trazido de suas lágrimas pelo grande alarido em frente a casa grande, foi ver.

Pasmo viu todos os escravos da casa e da lida parados diante de Eleutério de pé diante da casa, trazia flores presas dentro dos farrapos de sua camisa bem junto ao peito, e disse:

-Voltei pra curar o Sinhozinho.

Ficaram todos boquiabertos e o senhor ordenou que o tirassem dali, sua figura era vergonhosa e ridícula, todo ensagüentado e sujo de lama com uma perna quebrada coxeando agarrado a um maço de flores, cada um dos homens que tentaram para-lo foram arremessados longe, sem a menor chance se quer de tocar o moribundo. Moribundo muito vivo pois sim, depois de deixar desacordados ou mais quebrados que ele todos os capangas da fazenda que se atreveram a se colocar em seu caminho, Eleutério parou diante do seu senhor no alto da escadaria e disse:

-Pelo meu filho não pude nada, pelo seu posso.

Olhava tão firme e sem medo para o senhor que o fazendeiro se afastou e disse que fizessem como Eleutério queria. O olhar daquele homem em farrapos e coxo com uma rama de flores no peito era o que faltava neste dia de horrores, mas o filho estava à morte e apesar de tudo e mesmo com medo confiou.
Eleutério foi ate o quarto do menino e de lá só saiu três dias depois com o garoto de pé, não comeu, não dormiu, não bebeu água só cuidou dos remédios que fez com a singela flor azulada e das orações cantadas que entoou sem sessar. quando se deu por satisfeito se despediu do menino comum longo abraço e foi embora como chegou, nunca mais dele por lá se teve notícias e nunca mais o menino teve nada, sua história virou lenda.

Ouvi essa história contada por meu PDS depois que, em uma sessão, Pai Eleutério chegou na gira muito triste e chorando disse que não reparassem se ele se ausentasse por alguns instantes pois estava chegando a hora de um filho muito querido, que sempre acompanhou e que nem tinha a consciência dele.
No meio da gira, Pai Eleutério começou a chorar, virou-se de costas para a assistência e de frente para o gongar e nesta posição permaneceu por quase 1 hora, quando voltou-se ainda chorava muito e disse:

-Somos sempre responsáveis pelo que deixamos como legado nesta vida, e em muitas outras. Este velho ainda é muito rude e tem muito ainda a caminhar até chegar onde estes outros chegaram - apontou para os outros velhos incorporados no terreiro.
-Muito rude e trazendo ainda algumas dores deste mundo, esta é a maior... este filho carnal meu de outra vida ainda cumpre seu caminho neste mundo como encarnado, hoje é louro de olhos claros, mora em terras distantes, frias terras distantes...- entre lágrimas e seu cachimbo continuou: hoje mais uma vez se despede desta terra e infelizmente ainda não aprendeu sua lição, fico triste por isso. Não compreendeu ainda a se libertar verdadeiramente de sua verdadeira escravidão, todos os que penam nesta terra são escravos, cá estão para aprender a ser livres, a estar leves e desimpedidos das amarras dos sentimentos tolos e do egoísmo, e quanto mais tentam libertar fora mais presos dentro estão, é triste isso, velho nada pode fazer...- chorava muito.
Agarram-se a suas vidas pequenas e pequenas coisas, lutam por espaço e poder pra estarem cada vez mais presos e amarrados nas correntes que constroem dia e noite para si mesmos, escravos de si mesmos do pior feitor...
-Ao velho cabe apenas estar pronto para no momento certo, da escolha única abraçar seu filho livre, mas filho meu trava ferros nas mãos e nos pés, todos filhos fazem isto, peço a Papai do Céu para que entenda a ser verdadeiramente livre, para que todos se libertem, enquanto isso velho está aqui, velho está la quando chamarem e precisarem no momento exato, velho está lá braços abertos pro filho voltar.

Virou de costas por mais alguns instantes e depois voltou a gira calado e assim ficou até o final.
Meu PDS disse que viu parte do processo que aconteceu e que isso deveria servir de exemplo a todos nós para o resto de nossas vidas.

Procurei ser o mais fiel ao que vi e ouvi naqueles dias mas algumas imprecisões podem haver, peço desculpas, já se vão quase 10 anos isso, mas a lembrança ainda é muito viva e muito útil.

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